segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

A morte do velho

Ele já estava bem velhinho, é verdade, mas sua morte, de forma abrupta e violenta, deixou uma legião de órfãos profundamente consternados e alguns invejosos tentando disfarçar a euforia com uma forçada fisionomia sisuda e um sorriso camuflado nos cantos da boca. Todos fizeram questão de cumprimentar os filhos do defunto e manifestar seus sentimentos pela perda irreparável.

O velho, que completaria 100 anos no dia 14 de abril de 2012, vivia no anonimato internacional havia quase 50 anos e curtia férias no Japão, virou notícia no mundo todo após ter sido brutalmente atropelado por um veloz carrossel ocupado por turistas espanhóis. O massacre correu o planeta e colocou em xeque o até então belo legado deixado pelo cansado marujo.

E os amigos chegavam e logo se dirigiam aos filhos do morto. Olhares, sorrisos, lábios contraídos, abraços, tapas nas costas, apertos de mão e palavras de consolo não confortavam aqueles pobres órfãos que conseguiam distinguir com precisão entre gestos sinceros e discursos previamente elaborados única e exclusivamente para travestir sentimentos de alívio, deboche e satisfação com o falecimento de um senhor que se tornara alvo de inveja e cobiça, principalmente nos últimos dez anos.

Iniciado minutos depois da constatação do óbito, o velório durou dois longos dias. Período em que os filhos do quase centenário foram ininterruptamente sabatinados. A grande maioria das pessoas era claramente movida pelo sadismo, mas também havia aqueles realmente preocupados com o inevitável impacto que aquela morte provocaria em suas vidas.

Uns dizem que se sua partida estabelecerá uma nova ordem mundial. Outros, mais cautelosos, acreditam que se trata apenas de um momento previsto pelo naturalista britânico Charles Darwin. No entanto, as duas correntes concordam que o trágico acidente envolvendo o líder de um dos vilarejos mais famosos do globo terrestre merece um lugar de destaque na história.

O velho se foi na manhã de domingo. E levou consigo seus sonhos e a soberba que o colocava acima dos outros e fazia com que seus compatriotas se achassem os donos do mundo. Eu sou um dos órfãos da história. Mas tenho certeza de que não permanecerei nessa condição por muito tempo.

Afinal, enquanto tremular a bandeira com as cores preferidas do velho Leão do Mar, sempre haverá um grupo de órfãos pronto para o milagre de sua ressurreição. Até lá, respeitemos o luto e a dor da família, pois não sabemos o que o futuro nos reserva. Hoje foi o rei do vilarejo, amanhã pode ser um idoso parente seu. Pense nisso.